Luiz Carlos & Totó in Aparecida do Norte-SP in 1978.
De-repente comecei a pensar no Totó enquanto esperava o sono chegar numa dessas noites atipicamente quentes de abril (2016). Resolvi fazer um resumo de nossa conexão desde os primeiros momentos.Soube da existência de Antonio Carlos de Faria circa 1966, através de um anúncio na ‘Revista do Rock’, publicação mensal carioca, onde ele, como Presidente do Fã-Clube Rita Pavone convidava fãs da cantora italiana a juntarem forças. Não me contentando em apenas escrever, assim que recebi resposta de minha primeira carta, resolvi ir até o Bosque da Saúde, para verificar ‘in loco’ as dependências do tal fã-clube.
Não me lembro exatamente o nome da rua (se tivesse acesso a uma coleção da ‘Revista do Rock’, certamente acharia o anúncio) mas percebi, ao chegar, que o endereço era um conglomerado de unidades de quarto-e-cozinha. Era um fim de tarde, talvez 16:00 horas.
Uma senhora muito simpática me atendeu e disse que o ‘Antonio Carlos estava trabalhando’. Ele trabalhava de office-boy numa papelaria na rua Afonso Celso, na Vila Mariana. Aproveitando a receptividade positiva de dona Tina, eu disse que eu era fã de Rita Pavone e tinha visto o anúncio do Antonio Carlos na ‘Revista do Rock’ etc. Ela logo foi me mostrando as dezenas (ou centenas) de cartas que seu filho tinha recebido nos últimos dias e deixou-me à vontade, sentado no degrau da porta de entrada, com um bom lote em minhas mãos.
Em questão de minutos eu fiz uma rápida seleção dos envelopes, separando-os de acordo com as letras mais bonitas ou interessantes, passando a ler algumas delas, ao mesmo tempo que ia anotando os endereços dos fãs que achei serem os mais simpáticos e dedicados.
Fiquei ali, talvez, meia hora, na esperança que Antonio Carlos chegasse, mas depois que dona Tina disse que ele só sairia do serviço as 18:00 horas eu fui me embora, pois morando na Vila Madalena, e não havendo metrô naquele tempo, demoraria um bom tempo para chegar à Zona Oeste.
Esse foi meu primeiro contato (indireto) com aquele com o qual eu teria uma longa, embora muitas vezes, interrompida amizade. Assim que cheguei na Vila Madalena passei a escrever para alguns daqueles fãs da lista. Alguns responderam e o próximo passado seria conhecê-los pessoalmente. Das cartas recebidas, a que mais me agradou foi de uma Silvia Paula Jentsch, que morava na rua Coronel Lisboa, na Vila Clementino, e se relevou uma grande personalidade. Sem querer, eu tinha ‘acertado na loteria’. Em algumas semanas eu contataria Silvia por telefone (de um vizinho dela, cujo nome e número achei na Lista Telefônica de Endereços), seria convidado por ela a aparecer em sua casa num sábado à tarde, assim começando uma grande amizade. Silvia tinha discos importados de Rita Pavone, o que era raro naquele tempo.
Depois dessa visita, escrevi ao Antonio Carlos relatando meu encontro com a Silvia, e ele, não perdendo tempo, logo também comunicou-se com ela, e acabou conhecendo-a em sua casa na rua Coronel Lisboa, 418, perto da esquina com a Avenida Sena Madureira, local que não ficava muito longe da papelaria onde ele trabalhava.
Se me perguntassem, eu não saberia precisar onde e quando eu conheci Antonio Carlos pessoalmente. Naquele tempo a gente não tinha o costume de marcar encontro em ‘catraca do metrô’ ou mesmo num bar para tomar café ou refrigerante. A gente marcava encontro na casa de um, ou de outro. Não me lembro de ter voltado uma segunda vez à sua casa, portanto pode ser que nós tenhamos nos conhecido pessoalmente num sábado à tarde na casa da Silvia Paula. Ela gostava de dar apelidos aos amigos. Seu irmão Roberto, ela chamava de Glú, sua amiga Adelaide, de Della, eu tornei-me Lulú e Antonio Carlos foi batizado sumariamente de Totó... e o apelido pegou, embora ele já fosse conhecido como Toninho no ambiente de trabalho.
Até agora eu fui ‘biográfico’ e segui uma narrativa de ‘Revista do Rádio’. O que eu, realmente, gostaria de fazer é analisar o âmago da amizade do Totó para comigo. Não a minha com ele, mas a dele para comigo. Eu sempre o achei uma pessoa extremamente desconfiada. Talvez isso seja típico de arianos (signo de Áries). Eu sempre achei que o Totó tinha ‘um pé atrás comigo’. Talvez fosse por causa de meu ‘primeiro ato’ em relação a ele: fui à sua casa num momento que ele não estava, peguei sua correspondência particular e a usei para meus fins, embora tenhamos todos nos beneficiados de meu ato. Nunca tive certeza se era isso, realmente, o que ele pensava de mim, mas a impressão ficou.
Outro fato relevante também era o relacionamento que Totó estabeleceu com Sissí (sim, o apelido de Silvia). Ele a adorava. Ele a colocava num pedestal inatingível. Silvia era, realmente, uma figura notável. Ele, mais tarde em nossa amizade, dizia que Silvia era uma Greta Garbo. Eu também a idolatrava. Então, minha amizade com Totó já nasceu como de ‘segunda-mão’.
Para entender o fascínio que Silvia exercia no Totó eu teria que falar um pouco sobre ela. Silvia Paula Jentsch era de uma geração anterior à nossa. Silvia nascera em 1º Fevereiro 1942. Eu nasci em Maio 1949 e Totó em Abril 1951. Silvia era 7 anos mais velha que eu e 9 anos mais velha que Totó, portanto ela tinha muito mais conhecimento de cultura popular do que nós dois juntos. Além do mais ela era loira, o que no Brasil significa bastante na escala socio-racial. Não loira oxigenada, mas loira pura.
Seu pai, Otto Jentsch imigrou da Saxonia p’ro Brasil nos anos 1930s, entre a I e II Guerra Mundial, casando-se com Paula Sawade, uma linda moça filha de imigrantes alemães vindos da Alemanha no início do século XX, estabelecendo-se em São Simão-SP (pequena cidade nas cercanias de Ribeirão Preto).
Quando Paula era menina a família se mudou para uma grande propriedade semi-rural lá no Jabaquara, onde o alemão era a língua franca. Casou-se com Otto Jentsch em 1940, quando a Alemanha ainda era vista com bons olhos pelo regime getulista. Depois que o Brasil foi forçado a entrar na II Guerra contra a Alemanha, as escolas de alemão foram todas fechadas, mas mesmo assim Silvia e seu irmão Roberto só falavam alemão em casa, embora não tenham sido alfabetizado nela. Silvia só veio aprender o português em 1949, quando a matricularam num grupo escolar na Vila Clementino. Ela repetiu o 1º ano justamente por não entender a língua local, mas logo em seguida se destacou em todas as matérias, sendo uma desenhista natural notável.
Quando dona Paula percebeu que a menina tinha talento para desenho, a introduziu ao mundo da pintura sobre porcelana, atividade muito popular entre mulheres da classe média paulistana nos anos 50s e 60s, e a família Jentsch, seguindo o brilhantismo da filha, foi aos poucos entrando nesse ramo comercial, muito embora sr. Otto tivesse seu lugar garantido como engenheiro da Cia. Telefônica, que era canadense. Quando eu e Totó conhecemos a Silvia, o sobrado onde ela morava já tinha se transformado em uma verdadeira loja de porcelanas, além de terem um forno semi-industrial para a queima de porcelana. Era um negócio que ia de vento em popa e a casa vivia cheia de gente comprando, trocando, trazendo peças para serem queimadas e alunas que recebiam aulas de desenho e pintura da Silvia num atelier de pintura nos fundos de um longo quintal.
Silvia tinha aversão a atividades de ‘meninas’. Desde tenra infância ela se identificara com o comportamento masculino e quando Rita Pavone surgiu em 1964, vestindo roupas masculinas, e usando cabelos curtos, foi a dica para Silvia se libertar de vez. A partir daí ela nunca mais trajou vestidos, mas apenas calças compridas e cabelos curtinhos. Só para se ter uma idéia do ‘look’ de Silvia, ela era barrada de entrar em banheiros femininos, portanto tinha que usar banheiros públicos masculinos. Não demorou muito em nossa amizade para Silvia se declarar lésbica. Ela tinha preferência sexual por mulheres. Eu, que já sabia de minhas próprias preferências, me declarei homossexual e assim nosso pacto de amizade se solidificou.
A mãe, apesar de ser germânica, era uma mulher supersticiosa e tinha predisposição ao ocultismo de tendência umbandista. Sim, por incrível que pareça, dona Paula e seus conhecidos mais íntimos, participavam de uma sessão de umbanda que acontecia nas tardes de domingo, no fundo da casa deles na Vila Clementino. Lá presidia ‘Mãe Guamar’, uma umbandista branca que fazia os alemães girarem, fumarem charutos e beberem pinga perdidos em nuvens de defumadores. Só não havia atabaques para não assustar a vizinhança.
Quanto eu conheci Silvia, ela já era ‘medium’ desenvolvida, recebendo um Preto Velho, que falava todo aquele linguajar que a gente ouve na música do Noriel Vilela: ‘Ah mu fiu do jeito que suncê ta, só u óme é que pode te ajudar’...
Depois de alguns meses freqüentando a casa acabei participando de uma sessão de umbanda e aderi ao rito sem pensar muito. Geralmente eu ia à casa da Vila Clementino aos sábados à tarde, e com o passar do tempo, pernoitava na casa compartilhando o quarto do Roberto e só voltava p’ra Vila Madalena no domingo à noite.
Totó conheceu Silvia algumas semanas depois de mim, mas se entusiasmou tanto com ela, que nós competíamos pela preferência dela. Logo depois que eu comecei a freqüentar as sessões de umbanda, Totó também começou a aparecer. Tudo isso se passou entre o final de 1966 e 1967. Foi uma época mágica para mim, e creio que Totó também se divertiu muito, pois quando estávamos nós três, conversávamos horas a fio. Nós três, na verdade éramos nós quatro, já que Claudete Deleva, uma outra fã de Rita, que morava na Agua Raza, na Zona Leste, que também tinha escrito originalmente para o FC do Totó e cujo endereço eu tinha anotado - juntou-se ao grupo.
Em uma de minhas primeiras visitas a Silvia, contara a ela sobre minha ‘lista de endereços de fãs’ e que tinha marcado encontro para conhecer alguns deles pessoalmente. Ela, então manifestou desejo de ir comigo à Zona Leste para conhecer a Claudete, num sábado à tarde. Silvia se entusiasmou muito com Claudete e as duas logo começaram um caso de amor, já que Claudete era versada em livros da Cassandra Rios, a mestre do lesbianismo dos anos 50s e 60s. Assim, pouco a pouco, o Fã Clube foi se ‘diversificando’.
Em Maio de 1967 eu fiz 18 anos, Totó tinha feito 16 em Abril. Silvia tinha 25 anos embora não parecesse. Na verdade Silvia se parecia a um rapaz de 16 anos – onze anos mais nova que sua idade real, além de ser o que se chamaria atualmente de ‘gender-bender’.
Não sei exatamente quando Totó se declarou homossexual, mas acho que foi para a Silvia, e ela me contou depois. Veja que ele não se ‘revelou’ a mim, mas a Silvia. Totó visitava Silvia em dias de semana (provavelmente depois que saia do serviço na papelaria) e ficava horas conversando enquanto ela ia pintando porcelana em seu ateliê no fundo do quintal da casa da família Jentsch. Eu, como morava na Zona Oeste só ia à Vila Clementino aos finais de semana. A amizade de Totó com Silvia seguiu um caminho próprio.
Depois que nosso entusiasmo de fãs de Rita Pavone abrandou, conversávamos sobre outros artistas e assuntos. Silvia tinha um gosto peculiar para sua faixa etária, pois desde que a família Jentsch comprara TV no final dos anos 1950s ela se apaixonara pela cantora-apresentadora Hebe Camargo, que comandava ‘O mundo é das mulheres’, um programa de variedades na TV Paulista, Canal 5. O programa era apresentado 4 vezes por semana. Silvia também era ávida seguidora da chamada ‘Velha Guarda’, não perdendo um programa de Moraes Sarmento, pela Radio Bandeirantes, ou onde ele estivess, de onde ela gravava (em seu gravador-de-rolo Geloso italiano) músicas de Orlando Silva, Sylvio Caldas, Carmelia Alves, Francisco Alves e principalmente Carmen Miranda. Veja que Silvia gostava de Carmen quando ainda não era ‘chic’ cultuá-la, o que só aconteceu depois do advento da Tropicália em 1967... viva a banda-da-da, Carmen Miranda da-da-da-da!!!.
Totó, por outro lado, era moderno e se mantinha sempre bem informado sobre as ultimas novidades do mundo pop anglo-americano, citando Bob Dylan, Donovan, Sony & Cher etc. Me lembro desses 3 nomes nitidamente, pois me deu a impressão que Totó era interessado em assuntos ‘culturais’ e fascinantes. Ele sabia do ‘poder’ que os anglos chamam de ‘name dropping’ (citação de nomes).
Totó lia muito jornal, muita revista e escutava muito radio. TV ainda era um produto caro e não creio que ele tivesse acesso. Meu pai, que tinha um bom rendimento como sapateiro ortopédico, só conseguiu comprar TV em 1965. Como já disse antes, Totó daria um ótimo jornalista de variedades em qualquer programa de radio ou TV. Um Nelson Rubens pop.
Me lembro que no tempo da briga entre fãs de Rita Pavone versus The Beatles promovida astutamente pela Radio America (circa 1967) Totó teve participação constante, sempre escrevendo para os DJs José Paulo de Andrade, Jorge Helau e Ferreira Martins, que liam trechos das cartas no ar, atiçando assim mais a briga entre os fãs. Essa disputa se estendeu à revista semanal Fatos & Fotos e se v. procurar direito vai achar carta dele (ou minha) na seção de cartas da revista carioca.
Analisando as atitudes do Antonio Carlos... ele era um menino audacioso. He had a dream... (ele tinha um sonho) e resolveu colocá-lo em prática. Veja que em 1966, com 15 anos, ele ‘formou um fã clube sozinho, do nada’, escreveu para algumas revistas e se ‘colocou na mapa’. Quando eu escrevi para o endereço do Fã Clube Rita Pavone eu pensei que era um grupo de fãs que tinham se reunido e decidido em assembléia a criação do tal clube. No entanto quando eu cheguei ao endereço, notei que o ‘fã clube’ era apenas ‘uma pessoa’. Mesmo assim eu não me surpreendi, nem tampouco tentei imitar a idéia, já que meu objetivo não era de competir, mas de aglutinar, de reunir o maior numero de fãs possível para divulgar nossa idolatrada.
Havia um fã clube em Sorocaba-SP, capitaneado por um grupo de meninas lésbicas que se encontravam num rink de patinação dos pais da Leda Gonçalves, uma das ‘presidentes’ do ‘clube’ e patinavam ao som das faixas do LP ‘Meus 18 anos’. Havia outro fã-clube de uma turminha de São Carlos-SP, cujo ‘presidente’ era um rapaz chamado Luis Fabio e a primeira-secretária a Soninha Oliveira. Mas o F.C. de São Paulo era único... era o Antonio Carlos Faria como presidente, 1º secretário, divulgador e tudo o mais.
No final de contas, o ‘verdadeiro’ Fã Clube éramos Nós, os que nos encontrávamos na casa da Silvia Paula. Não tínhamos nome, mas nos congregávamos quase que semanalmente e fazíamos várias atividades sem qualquer aviso prévio ou formalidade. O mais burocrático dos FCs era o de São Carlos, que tinha até ‘estatuto’ e carteirinha (com foto) renovável periodicamente. O mais ‘anárquico’ era o de Sorocaba, cujos membros só patinavam na pista local.
Totó foi instrumental em começar um ‘movimento de fãs’ em São Paulo, e eu fui o catalisador que fez a coisa funcionar pela praticidade (uma coisa bem de taurino mesmo) e espírito aglutinador. Eu acho que Totó respondeu apenas algumas de todas aquelas cartas que ele tinha recebido. Ele começou a rolar a bola e eu a levei a frente. Sem dúvida, ele tinha uma qualidade nata de líder... e eu de ‘agitador’. É incrível comparar, mas quando eu entrei no Somos – 13 anos depois - eu notei que já tinha ‘experiência’ daquilo tudo, que eu tinha adquirido, não no movimento estudantil (como alguns), mas no movimento de fã-clubes.
Quando 1968 chegou, eu fui servir o Exercito, e acabei me afastando do pessoal. Na verdade o Fã Clube tinha se tornado um grupo eclético e relativamente grande, composto em sua maioria de moças lésbicas e o foco das reuniões se mudou da Vila Clementino para o bairro da Bela Vista, onde Silvia tinha alugado um apartamento na rua Dr. Luiz Barreto, para morar com sua namorada Claudete. Essa fase foi de 1968 a 1970. Eu estava em tremendo baixo astral. A partir de 1968 eu entrei num período de depressão, embora não estivesse consciente disso.
Entre 1968 e 1970 eu tentara alguns suicídios até chegar à conclusão de que ‘não adiantava’. Amarguei um período de desemprego, mas em Março de 1970, finalmente, eu consegui trabalho como datilógrafo na Associação dos Advogados de S. Paulo, onde eu tinha um salário relativamente bom, o que me deu perspectivas novas para ‘pick up the pieces’ (ajuntar os pedaços) e fazer planos de ‘sumir no mundo’ (ir p’ro exterior); o que me fez sair da depressão, embora não tivesse resolvido as questões pendentes.
Não sei exatamente o ano, mas Totó se envolveu com o negócio de caitituagem – ato de promover algo, geralmente no campo artístico – segundo o dicionário. Ele trabalhou para um cantor chamado Mario Amorim quando ainda tinha o F.C. Rita Pavone. Mais tarde trabalhou para a Meire Pavão, na época do sucesso ‘Família Buscapé’ e, já nos anos 1970s, caitituou para a cantora Sueli, cujo ‘Férias na praia’, versão de ‘Ring ring’ do Abba, chegou a fazer bastante sucesso.
Totó sempre me falava de um tal de Danny Dallas Presley, que só nos anos 2000 eu descobri era pseudônimo de Antonio Claudio, que tinha gravado rock em inglês para a gravadora Young do Miguel Vaccaro Netto em 1959-1960, depois mudara de nome e gravara na RGE por um tempo. Me lembro de certa vez ter ido com o Totó na casa de um fã desse Danny Dallas Presley lá em São Miguel Paulista. Naquele tempo os ônibus para a Zona Leste saiam todos do Parque D.Pedro II e levava muito tempo até chegar lá. Era uma tarde de domingo ensolarado... nunca me esqueço desse dia. Eu sempre gostei de ir a lugares distantes. Deve ter sido em 1969 ou 1970, pois eu até achei que nós encontraríamos o Antonio Marcos por lá (ele aparece no cenário artístico em 1969).
Nós continuávamos nos encontrando periodicamente nos vários apartamentos de amigas em comum ou em lugares como o Ferro’s Bar, onde ficávamos horas sentados nas mesas conversando aos sábados à noite ou domingo à tarde. O grupo tinha crescido muito, havendo 1. Silvia, 2. Claudete, 3. Betcy (vinda de Joinville, SC), 4. Raquel; 5. Emilia Fantinatti; 6. Pipa; 7. Neide Bonilha; 8. Maria Tereza; 9. Touché (esses 4 últimos de São Caetano do Sul) 10. Malú (Maria de Lourdes Pelaes, do Ipiranga); 11. Lucinda Rato; 12. Maria Loch (vinda de Crisciúma-SC); 13. Noka Loch; 14. Rafael; 15. Psiu (os 2 últimos de São Caetano do Sul também) 16. Téo & 17. Cléo e mais outras que não lembro o nome agora. Era um grupo de mais de 20 pessoas. Me lembro de uma menina do grupo chamada Maninha, cujo nome real era Najara, que era lésbica, mas achou um namorado judeu e acabou casando-se na Catedral da Sé. Ela gostava da música ‘Everybody’s talkin’... portanto era início de 1970. A maioria dos convidados do casamento hetero da Maninha era de homossexuais masculinos e femininos. Acho que a lua-de-mel deles seria na Argentina. Nunca mais soube dela.
Era uma época louca. Algumas lésbicas mais masculinizadas freqüentavam um tal de Reboliche, em Pinheiros, que era considerado ‘barra-pesada’. Havia também uns ‘pais’ (lésbicas masculinas) que faziam papel de ‘maridos’ de ‘ladies’ (lésbicas femininas) que tinham sido adicionadas ao grupo, meio que descaracterizando-o, já que originalmente éramos todos muito jovens e inexperientes. Essa ‘gente nova’ vinha dos muitos cortiços da Bela Vista, onde viviam gays e lésbicas mais ‘populares’; vários de origem nordestina. Me lembro particularmente de um casal masculino; o ‘macho’ era um rapaz bem encorpado e a ‘bichinha’ um baianinho que falava fino e tinha alguns trejeitos que o qualificavam como ‘passivo’. Era o único casal masculino... o resto eram só mulheres.
Tudo isso se passou durante meu período de ‘depressão’ e para fugir disso eu ia ao cinema assistir filmes como ‘Midnight cowboy’, que só fazia minha depressão aumentar. Isso sem contar os LPs de Janis Joplin e Jimi Hendrix que estavam sempre tocando nas vitrolas lá de casa. Aquele LP ‘I got dem ol’ kozmic blues again mama!’ representa o nadir da minha saúde mental. Jamais gostaria de passar aquilo novamente. Fiquei muitos anos sem sequer ouvir Janis Joplin, com medo que aquela depressão voltasse novamente. Até o título do álbum diz tudo: ‘Estou com aquelas tristezas cósmicas outra vez, mamãe!’ Deus me livre!
Quando eu encontrava o Totó era só ‘festa’. Nunca deu para eu conversar ‘profundamente’ com ele – ou com outra pessoa do grupo – sobre assuntos que não fossem de ‘embalo’. Essa é uma época que eu ainda me lembro com uma certa dose de ‘dor’ ou ‘confusão’. Tudo era muito confuso para mim. Eu não entrei em detalhes, mas minha grande decepção (e conseqüente depressão) foi a Umbanda não ter ‘funcionado’ para mim.
Desde os 16 anos, eu tinha muito medo do fato de que eu pudesse vir a servir o Exercito. Esse medo me foi incutido por um colega de trabalho machista que sempre me alertava que eu iria ‘sofrer muito no quartel’, que eu ‘tinha que mudar meu jeito’ etc. Eu fui criando um pavor dentro de mim, e quando freqüentei a Umbanda, pedi a Mãe Guamar para me livrar do ‘mal’ (parece a musica do Noël Rosa). A medium me deu uma série de ‘tarefas’ e banhos de várias ervas para os guias me ‘livrarem do mal’. Só que em Janeiro 1968, eu comecei a servir no quartel do CPOR na rua Alfredo Pujól, que se inicia na rua Voluntários da Patria, Santana. Aí começou meu martírio. Só que esse assunto dá para escrever um livro inteiro. Só o citei para te dar a noção de onde vinha minha depressão e confusão mental. Acabei abandonando a Umbanda, como tinha abandonado o Catolicismo, e cai num Ateísmo árido e brutal.
Eu não me lembro onde o Totó trabalhava nesse tempo. Só sei que em 1º Outubro 1971, eu voei p’ros USA e só voltei ao Brasil em Abril 1973. De volta à terra eu demorei uns meses para me integrar ao país novamente. Tenho fotos da festa de Natal 1973, onde aparecem eu, Totó, Silvia, Claudete, Malú Pelaes e uma moça nordestina que eu ainda não conhecia chamada Irene.
Entre 1973-1975, Totó gostava muito de ir à feira de artesanato da Praça da República, pois ele tinha uma amiga que lá expunha sua arte chamada Germania, uma moça negra que vendia produtos de couro (se não me engano). Tenho fotos dele com Germania. Ele tinha uma maquina fotográfica boa e estava no auge de seu amor pela fotografia.
1973-1974-1975 passou muito rápido. Eu dava aulas de inglês à noite no Fisk da Vila Mariana e, aos sábados de manhã, no Fisk do Ipiranga. De dia eu trabalhava de dactilógrafo no balcão de anúncios do jornal ‘O Estado de S.Paulo’ dentro do Supermercado Jumbo-Aeroporto (1974) e em 1975, num balcão dentro do Supermercado Pão de Açucar, na Avenida Santo Amaro, altura do no. 6400. Eu não tinha tempo mais para a ‘turma’, pois ajuntava dinheiro (e energias) para voltar p’ros U.S.A.
Em Julho 1975, eu voei p’ros USA novamente e só voltei ao Brasil em Outubro 1976. Em seguida, Fevereiro 1977, minha família mudou-se para o Rio Pequeno. Em 1978, lembro-me que Totó veio me visitar aqui quando eu figuei doente com hepatite e fiquei quase um ano de cama. Isso foi no inverno 1978 - me lembro da data pois era o tempo da Copa do Mundo na Argentina. Demétrius lançou uma música chamada 'Buenos dias, Buenos Aires', que tocava muito no rádio. Totó veio junto com o Pedro me visitar; portanto ele já tinha novas amizades e trabalhava numa agência do Banco Itaú na Avenida Paulista. Veja que os anos 1970s passaram qual um relâmpago para mim.
Totó já morava na rua Tucuri, nas cercanias da Praça da Árvore, há alguns anos e eu comecei a passar por lá no final de tarde de sábados para depois virmos juntos p’ro centro da cidade. Acho que essa foi a época que minha amizade com ele foi mais intensa, embora ele sempre estivesse com o Pedro à tira-colo. Foi a época que Totó fazia o tipo ‘tirana’ e mandava em todos esses colegas que ele fizera trabalhando no Banco Itaú: Pedro, Ary, Genésio e outros. Ary morava numa kitinete no Glicério. Me lembro de nós visitando-o lá. Eu sentia uma certa inveja (positiva) desses que tinham seu próprio apartamento e vida independente. Eu e Totó continuávamos a ‘morar com Mãe e família’.
Foi em 1978 & 1979, que eu & Totó íamos quase todo sábado ao apartamento da Neidinha e Xuxú (apelido de Maria Tereza) duas moças de São Caetano do Sul conhecidas através do pessoal do F.C. - que tinham caso e passavam os finais de semana em São Paulo como ‘casal’ – elas tinham um apartamento kitchneti na Avenida 9 de Julho. Foi um período gostoso, onde, aparentemente, não havia preocupações maiores. Totó gostava de contar suas peripécias sexuais para as meninas e alguns convidados que estivessem lá como Rafael & Touché (oriundos do ABC também) e todos nós ríamos muito. Ficávamos lá umas 2 horas e depois íamos para a ‘noite'. Só que eu, na verdade, sempre vinha p’ra casa antes da meia-noite, aquele negócio de pegar o último ônibus para o bairro distante, tão maldosamente denominado de ‘negreiro’.
Eu acho que Totó aproveitava a ‘vida’ mais que eu, e acabava arrumando uma transa aqui ou ali. Ele era muito ativo sexualmente e sabia bem o que queria. Eu menos, pois, além de ter ‘começado tarde’, sempre estava com alguma doença que pegara em alguma sauna, que eu descobrira no ano de 1978, levado pelo Julio, um professor de inglês maranhense que tinha conhecido no Fisk Vila Mariana. Totó era mais esperto; o ‘campo de batalha’ dele não era em saunas; era em bares, praças e ruas, que é mais ‘seguro’ – pelo menos naqueles tempos pré-Aids.
A atitude mental de Antonio Carlos Faria sempre foi ‘p’ra cima’. Ele era um positivista em potencial. Louvor e Celebração da Vida era uma constante com ele. Se ele tivesse entrado no ‘business’ de igreja evangélica, com certeza teria conseguido muitos adeptos e aberto várias igrejas por essas periferias. Eu não convivi com ele em sua ‘fase de escola-de-samba’ (ele saiu com a Barroca Zona-Sul e outras, se não me engano) mas ele deve ter brilhado, ou ter feito outras pessoas brilharem pelo seu grande entusiasmo. Ele estava sempre planejando pic-nics ou viagens à lugares turísticos. Ele ia regularmente à Bom Jesus de Pirapora ou Pirapora do Bom Jesus. Levava sua mãe e colegas do Itaú juntos. Eu cheguei a me ‘inscrever’ para a uma excursão, mas nunca acabou dando certo. Eu ainda gostaria de ir à Pirapora só para me lembrar dele, principalmente depois que descobri que é tão perto da região metropolitana, p’ro lado de Jandira.
Não fui à Pirapora, mas quando soube da intenção dos Faria de irem à Aparecida do Norte eu ‘bati o pé’ e ‘fiquei de olho’ para não perder a data. Tenho fotos de nossa viagem à Aparecida... inclusive dentro da antiga Rodoviária multi-cor da Avenida Duque de Caxias. Não me lembro de detalhes... só mesmo o que ficou nas fotos. Fomos eu, ele, dona Tina e Pedro. Eu sempre gostei de excursões comunitárias, daquelas que se promovem em bairros ou cidades do interior. Nas poucas que fui, foi sempre decepção! Conhece aquela música ‘O pic-nic foi bom, mas a volta é que foi tão triste, briguei com meu amor na estação, no trem ela voltou a chorar...’ cantada pelos Caçulas – há uma gravação do Wanderley Cardoso também. Acho que, no fundo de minh’alma eu achava que, um dia, num pic-nic ou excursão, eu acharia um grande amor. Sonhar é bom... o duro é constatar que a realidade é bem diferente.
Quando surgiu o Somos, Grupo de Afirmação Homossexual (final de 1979), nossa amizade, que já durava 13 anos, entrou numa outra fase, pois agora o ‘homossexualismo’ não era apenas ‘prazer e arruaça’, mas algo a ser discutido em grupos de intelectuais. Eu entrei no Grupo Somos por puro acaso. Eu enviara um anúncio para a revista ‘Peteca’ pedindo correspondência com gays, travestis ou machos, enfim, o que viesse era lucro. Muitos caras me escreveram, e entre eles, o Marcelo (esqueci o sobrenome) do Rio de Janeiro que era casado com a Leila Micolis (casamento de conveniência). Marcelo e Leila tinham vínculos com intelectuais paulistas que tinham formado o Somos há pouco tempo. Quando Marcelo veio à São Paulo, eu fui conhecê-lo pessoalmente no apartamento do Glauco Matoso, que era perto da estação Paraíso do Metrô. Isso foi numa sexta-feira. No sábado eu já estava no apartamento da Teca e do Eduardo, na rua Avanhandava, participando de uma reunião de ‘reconhecimento’ do Somos. Veja que tudo aconteceu como um raio fulminante.
Quando eu vi que o Somos era uma coisa boa, eu falei p’ro Totó e depois de algumas semanas ele também entrou no grupo, indo à reunião no apartamento de alguém que não me lembro. Isso tudo aconteceu no final de 1979. Em 1980 o Somos tinha crescido muito e houve aquele I Encontro de Homossexuais cujo ‘finale’ foi no Teatro Ruth Escobar, onde o Jô (que tinha pegado o bonde andando e não pertencia a grupo algum) fez um discurso meio ‘controverso’ na plenária, sendo bastante aplaudido pela platéia, mas não agradando muito aos intelectuais fundadores. Eu gostaria muito de reler o artigo que o João Silvério Trevisan escreveu sobre o encerramento do I Encontro de S.Paulo no jornal ‘Lampião’.
Para o Totó cair na órbita do Jô foi um pulo. Talvez eles tivessem travado amizade num dos grupos de ‘identificação’ que se formaram logo depois do final do Primeiro (e único) Encontro. Eu não acompanhei essa fase direito, pois de-repente eu deixei o Somos de lado para me concentrar em ensinar inglês (tinha deixado de lecionar por um tempo) e ajuntar dinheiro para ir p’ra Australia. Ai eu já tinha conhecido o Silvio Teodoro, que foi um amor abrasador e propulsor, já que me deu forças para planejar uma viagem para o outro lado do planeta.
Conhecera o Silvio Teodoro num curso de treinamento para professores de inglês, já que ele tinha vivido na Dinamarca um ano, tendo sido patrocinado pelo Rotary Club, num programa de intercâmbio de alunos. Silvio era muito inteligente (e esquizofrênico, embora eu não soubesse na época) e tinha ganhado uma bolsa do Rotary para viver 1 ano na Dinamarca. O mais ‘misterioso’ é que o Silvio, que era de Guarulhos, eu já conhecia de nome, pois o Jaime tinha me falado sobre ele com grande entusiasmo, chamando-o de ‘Téo’. Tinha até visto o tal de Téo muito rapidamente quando fui com o Jaime na I Bienal do Livro no Ibirapuera – uma que o Gabeira estava, mas não o reconheci quando ele sentou-se ao meu lado no curso de professores e começamos uma amizade de ‘curso de treinamento’.
Eu e Totó nos afastamos novamente, mas se você olhar minhas fotos de despedida em 5 de Setembro de 1981, lá na Rodoviária antiga (aquela de pastilhas, que parecia um disco voador) você vai ver as caras do Totó, Pedro, Josué, Ivan Gabriel, Jaime de um lado e o pessoal mais ‘machinho’ do Silvio e seus irmãos do outro.
Veja que minha partida p’ra Sydney fechou mais uma fase da minha amizade com Totó. A partir de então nós mantivemos uma correspondência irregular que daria uma média de 2 cartas por ano, mais algumas fitas cassettes que ainda possuo.
Assim se passou a década de 1980. No início dos anos 1990s eu comecei a vir ao Brasil ficando por aqui vários meses. Vinha com passagem de ida-e-volta, não podendo ultrapassar os 11 meses. Nas primeiras vezes que eu vim, Totó ainda morava na Rua Tucuri. Entrando-se pelo portão, descia-se uma escada de cimento e havia um corredor com quartos-e-cozinhas de ambos os lados. Talvez 4 unidades por lado, mais outras habitações virando o corredor. Havia dois banheiros coletivos que eram mantidos fechados a chave. Tudo muito limpo. Certa vez, da Australia, pedi a meu irmão Fernando que levasse uma encomenda que tinha mandado de Sydney para o Totó, e até hoje ele ainda comenta, com surpresa, a limpeza e ordem que existiam naquele conglomerado residencial.
Totó morava com dona Tina e seu irmão Fernando, que nos anos 90 já tinha se casado e morava em apartamento próprio. Toda vez que eu visitava os Faria eu ficava imaginando como seria o arranjo noturno ali naquele quarto, pois não havia cama, sendo o quarto usado como uma sala de estar. Assim que se entrava havia uma cozinha minúscula. Geralmente eu ficava ali sentado num banquinho, perto do bujão de gás, conversando com sua mãe enquanto ele tomava banho ou fazia a ‘toilet’ para a noite de sábado. Num quarto-e-cozinha contíguo morava uma tia do Totó, irmã de seu pai falecido quando ele ainda era criança. Essa tia não me lembro do nome, mas o expressivo rosto me é indelével. Era como se fosse uma Nina Simone mais clara. Essa tia, que também trabalhava com limpeza, era considerada ‘fofoqueira’ por dona Tina e elas tinham um relacionamento polido, mas meio frio. Ela era bem expansiva e eu, de certa maneira, gostava dela, pois acho que ela gostava de mim também. Me lembro de ter tomado cafezinho em sua casa e conversado coisas supérfluas. Ela era fã do Agnaldo Timóteo. Toda vez que escuto ‘Eu vou sair para buscar você’ me lembro da Geni, esse era o nome dela, na verdade, Jandira Faria. Ela era ‘solteirona’, talvez quarentona ou cinquentona, que naquele tempo era ‘velha’ para nós. Mas, me parece que ela freqüentava bailes e não tinha deixado a peteca cair, não.
Das antigas amizades do tempo de fã-clube só sobraram eu e Lucinda Rato, que ainda visitavam o Totó esporadicamente. Silvia, que agora morava num apartamento na rua Bela Cintra, ainda era assunto para nós. Lucinda era uma fã da Rita que conseguira um bom trabalho burocrático na Editora Abril e, as vezes, conseguia vender suas fotos para eles. Ela se tornara fã de Maria Bethania e tirou muita foto dela. Bethania aproveitou algumas fotos de Lucinda no LP ‘Drama’ (aquele cuja capa abre) onde se destaca uma montagem onde os rostos de Caetano e Bethania se sobrepõe.
Foi, talvez, por tudo isso que Totó se apegou tanto a Lucinda. Eles tinham muito em comum: começando com Rita Pavone e terminando com Bethania e o hobby da fotografia. Depois que Lucinda saiu da Abril ela se tornou entrevistadora ‘free-lance’ em firmas de pesquisa-de-mercado e conheceu meu irmão Fernando. Numa de minhas vindas de Sydney eu voltei a encontrar a Lucinda através de meu irmão. Lucinda morou alguns anos na Italia durante os anos 1980s.
Foi Lucinda que me disse que Totó tinha se mudado da rua Tucuri e estava morando na rua Helena alguma-coisa. Era na mesma região da Vila Guarani-Bosque da Saúde, mas mais p’ra cima, já que a rua Tucuri era numa ‘baixada braba’. Nós combinamos de um dia ir visitá-lo em seu novo endereço.
Essa foi, na verdade, a ultima vez que eu vi Totó. Era um domingo de manhã em 1997. Lucinda tinha um carro e lá fomos nós visitar o Totó em sua nova casa. Não sei porque, mas não entramos. Totó veio até o portão, de pijama, se não me falha a memória, e conversamos um pouco. Não sei porque, mas foi assim. Me lembro direitinho a gente indo embora e o Totó ficando no portão.
São Paulo, 3 Agosto 1999.
Querido Zé Luiz
Sento-me para escrever essas mal-traçadas! Já tentei te telefonar varias vezes; primeiro não tinha o número, pois naquele dia que v. me deu, junto com a notícia do falecimento do Antonio Carlos Faria, eu devo ter ficado abalado e acabei perdendo seu número.
Na mesma noite que você me telefonou, eu entrei em contato com a Lucinda Rato, amiga remanescente do tempo do Fã Clube Rita Pavone. Foi com ela que fiz minha ultima visita ao Totó em 1997. Depois que ele se mudara da Rua Tucurí nós tínhamos meio que perdido o contato.
Lucinda me disse que tinha visto o Totó algumas semanas antes de seu falecimento (10 Julho 1998) e até fizeram planos de ‘irem à luta’ e tirar fotografias juntos. Eles tinham um esquema de irem aos bairros, de porta em porta tirando fotos de crianças, voltando uma semana depois para vendê-las. Lucinda contou que Totó tinha sido despedido do Banco Itaú, tinha estado deprimido, mas já estava se recuperando e fazendo planos novamente.
Tudo tinha começado quando Toninho teve um pequeno derrame cerebral em pleno Banco Itaú. Ele desmaiou e foi levado a um hospital, onde ficou internado vários dias, tendo alta sem maiores seqüelas. Fora constatado que ele tinha ‘má circulação sanguinea’. Daí ele começou a ter inchações nas pernas e mal conseguia andar, fazendo com que faltasse com certa freqüência ao banco, o que fez com que a empresa bancária simplesmente o despedisse. Isso só fez agravar seu estado de saúde, pois além das inchações havia a depressão.
Todo esse drama começara logo depois que Totó tinha conseguido financiamento bancário para comprar um apartamento térreo num pequeno prédio na Aclimação. Pedro disse que ‘até parecia coisa’, pois ele, depois de ter batalhado uma vida inteira, ainda conseguiu deixar um apartamento para a Mãe. Parece irônico que eu sempre o visitara em ‘quarto-e-cozinha’ desde os tempos que ele morava na Vila Guarani-Bosque da Saúde, e quando ele ‘venceu’ eu não pude ver o fruto de sua vitória, já que não deu tempo para visitá-lo em seu apartamento.
Não sei exatamente o período de tempo que se passou desde que o Banco Itaú o mandara embora e seu falecimento. Pedro disse que suas pernas nunca mais ficaram boas, sempre inchadas. Levaram-no num tal de Dr. Fritz, médium do Ipiranga e esse disse que ele iria sarar. Continuou fazendo tratamento para o ‘coração e a cabeça’, palavras de Pedro, que também disse que Toninho se tornara muito nervoso com toda essa situação, certo dia amanhecendo com o rosto todo inchado e soltando fluído pelo nariz. Pedro diz que viu o Tó na quinta-feira e ele estava de bom-humor, pois estava freqüentando um curso de computação pago pelo Banco Itaú, já que ele tinha ameaçado o Banco de processo e eles resolveram ‘pagar’ esse curso.
No sábado, 11 Julho 1998, uns amigos do Toninho telefonaram para Lucinda dando a notícia de seu falecimento. Ela não foi ao enterro, embora deva ter ido ao velório. Peguei com Lucinda o telefone de dona Tina, e telefonei para ela, mas não quis fazer muitas perguntas e pedi a ela o telefone do Pedro, 1º amigo dele.
Estou aqui a transcrever carta que escrevi a Zé Luiz Jesus em 3 Agosto 1999 e muita coisa mudou depois disso. Nessa carta eu relato que Pedro tinha me dito que Toninho não tinha morrido de Aids, mas de complicações de um derrame que ele tivera enquanto trabalhava de sub-gerente da Agência Cambuci do Banco Itaú. O atestado de óbito dizia: ‘Enfarto agudo do miocárdio’. Pedro, embora a principio suspeitara que fosse o HIV, mudou de opinião após ouvir negativa categórica dele.
Pedro acrescentou que Fernando Faria certa vez. chegara a ele para uma conversa particular e perguntara à queima-roupa se ele não achava que as doenças de seu irmão eram parte da Aids, e Pedro discordou, pois ouvira negativa da boca do paciente.
Pedro fora avisado que Toninho tinha sido achado morto em seu quarto pela própria mãe, que tinha saído por algum tempo. O corpo ainda estava lá, metade fora da cama, como se Toninho tivesse sentido súbita dor, tentara se levantar para fazer algo, mas foi atingido por um ataque fulminante, caindo ali mesmo. O estrado da cama quebrou-se com essa queda. Pedro, então fez alguns procedimentos para colocar o corpo de volta à cama antes que o rigor mortis se instalasse. Não se esqueça que Pedro se tornara enfermeiro depois de ter saído do Banco Itaú, onde conhecera e tornara-se amigo inseparável de Toninho.
A causa mortis foi ‘parada cardíaca’ ou ‘parada cardio-repiratória’. O médico dele estava num congresso médico no Chile e como não havia Atestado de Óbito, o corpo fora levado para o I.M.L. (Instituto Médio Legal). Mais tarde apareceu alguém ligado ao Banco Itaú no IML, deve ter dado propina para algum funcionário e o corpo foi liberado sem necessidade de ‘post mortem’ (autopsia).
Eu creio que o Banco Itaú o despediu sumáriamente porque sabia que ele era soro-positivo HIV. Eles devem ter se comunicado com seu plano de saúde, que fatalmente fez o exame de HIV, mesmo sendo ilegal essa prática. Quando trabalhei na Embratel (ainda do Governo Federal) em 1997, eu fui testemunha de um caso que depois chegou aos tribunais. Um rapaz que fazia exames vários depois de ter passado no Concurso Público chegou p’ra mim um dia (enquanto esperávamos para fazer um exame de sangue) e me confidenciou que ele achava que apesar de ter passado no concurso, a Embratel não iria chamá-lo pois ele era soro-positivo HIV. Eu ainda tentei acalmá-lo dizendo que isso era ilegal. Trocamos telefones e... dito e feito. Eu fui chamado e ele não! Me ligou, depois que eu já trabalhava lá e disse que estava entrando com processo contra a Embratel. Futuramente eu fui arrolado como testemunha dele e prestei declarações em frente a uma juíza. Não sei que fim deu o processo, mas fiquei cara a cara com uma minha ex-chefe que eu achava uma grande falsa. Lá dentro da Embratel era uma panelinha podre... uma firma pública... imagina o Itaú, Bradesco etc. Eles podem tudo.
Não me lembro exatamente como o Pedro me contou, pois foi em 2002 ou 2003, mas depois de estar ali perto do corpo inerte do seu amigo, e querendo saber mais sobre seu histórico médico, perguntou onde ele mantinha os remédios que tomava. O irmão apontou para cima, num canto do guarda-roupa onde havia algumas embalagens com compridos e constatou que eram retro-virais, explicando assim toda a situação. Eu só não entendo porque o Pedro não me falou a verdade da primeira vez que conversamos ao telefone, um ano depois da morte. Talvez ele ainda se sentisse obrigado a fazer o que o amigo tanto desejara.
Passados alguns anos, eu telefonei para o Pedro certa vez só para matar saudades e ele parecia outra pessoa. Imediatamente começou a relatar a verdadeira história. Sim, Toninho tinha morrido de Aids. Foi quando ele contou a história dos comprimidos retro-virais em cima do guarda-roupa.
Notei que Totó não tinha suas simpatias sempre para a esquerda quando ele opinou sobre o projeto que Luiza Erundina tinha para aquele trecho entre o Anhangabaú e o Cine Art Palácio, que ela se atreveu a chamar de 'Boulevard São João'. Totó foi depreciativo e mordaz em sua crítica, como que dizendo 'a nordestina quer que São Paulo vire Paris'. Não foram essas palavras, mas foi por ai. Eu senti uma pontada por dentro, mas calei minha boca.
Isso foi em 1990 ou 1991. A partir de então eu evitava falar de política abertamente com ele. Toninho e Jô se davam muito bem nesse período. Certo dia eu e Totó fomos à casa dele lá em Santana. Falamos muito sobre música em geral e eu até comprei um LP da Elza Soares (que contém 'Boato') já que ele meio que vendia discos, não sendo apenas apreciador. Pelo que eu entendi o Jô era ligado à 'ala negra' do PDT. Você sabe que o PDT em São Paulo sempre teve um enviés de direita. Não me refiro a sua ‘ala negra’, mas ao PDT paulista em geral, que teve Francisco Rossi e outros conservadores disputando cargos eletivos.
Totó já tinha me escrito que o PDT tinha uma 'ala de negros' e acho que ele chegou a militar lá. Nunca cheguei a conversar detalhadamente com ele. Me parece que o PT errou em não ter uma política mais 'pontual' em relação aos negros. Por outro lado o PT errou em tantas outras coisas, que é difícil começar a enumerá-las.
Totó podia muito bem elogiar uma líder camponesa boliviana que visitava um festival de mulheres promovido pela Ruth Escobar em 1982 e logo em seguida falar um impropério contra um ‘nordestino’. Acho que, na verdade, o que faltava a ele era entender o âmago da coisa. Ele não sabia quem era o inimigo real. Ele ‘atirava p’ra todos os lados’ sem fazer uma devida ‘prévia seleção’. Não creio que ele tivesse tido cultura marxista tampouco. Faltavam-lhe base teórica e conhecimento histórico mesmo. É óbvio que havia uma tendência ‘tirana’ que não pode ser negada. Isso até teria sido bom (e divertido) se ele tivesse tido mais discernimento para identificar o verdadeiro inimigo, que era aquele que estava, geralmente, sentado ao lado da Hebe Camargo, por exemplo.
Mas esse é um mal do qual a maioria da população brasileira padece – a falta de educação real. Peguemos um ídolo meu e do Totó, que era o Pagano Sobrinho, um humorista nitidamente gay que tinha um público cativo nas rádios e TV nos anos 50 e parte dos 60s. N’outro dia, pesquisando o ‘Jornal da Tarde’ no Arquivo do Estado vi uma entrevista com o Pagano de duas páginas, feita no início dos anos 70s. Fotografei aquilo (salivando) com a intenção de transcrevê-la e postá-la no meu blog ‘Brazilian Pop’. Qual não foi minha decepção ao constatar que Pagano Sobrinho era ‘analfabeto político’. Não deu p’ra ‘salvar’ nem meia página de texto de todas as bobagens ilusórias que ele falou ao repórter. Ele era brilhante no humorismo de ‘costumes’, mas não tinha discernimento quando chegava na constatação da realidade político-social do dia a dia.
Eu achava que Totó se deixava influenciar muito pela 'media' direitista. O mesmo problema pelo qual nós padecemos em 2016. Totó, assim como a Silvia, sempre endeusaram a apresentadora Hebe Camargo, uma mulher conservadora e não muito inteligente em questões sócio-políticas. Houve uma época que Hebe gravava seu programa de TV (não sei se na Bandeirantes ou no SBT) do palco do antigo Cine Picolino, na Rua Augusta. Totó comparecia ao auditório religiosamente, e me parece que ele fazia ‘dobradinha’ com a Silvia, que morava na rua Bela Cintra, a poucos passos dali. Não saberia precisar a data desses eventos; pode ter sido em meados dos anos 80 ou início dos anos 1990s. A amizade de Totó e Silvia nunca diminuíra. Silvia chegou a ter um atelier de pintura-em-porcelana na Vila Guarani não muito longe da casa dele. A amizade só diminuiu mesmo em meados dos anos 90.
Antes de terminar esse assunto, veja que ironia. Eu voltei p’ro Brasil em Dezembro de 1988, depois de ter ficado na Austrália desde 1981. Fiquei aqui até Maio de 1989, quando o Collor começou a crescer nas pesquisas e se tornar a grande esperança da Direita, contra o ‘sapo barbudo’. Eu não cheguei a participar das discussões pois fui embora antes, mas fiquei sabendo que Silvia tinha votado no ‘bonitinho’. Pois bem, quando voltei em 1991, fui visita-la e ela que estava desconsolada, pois o Collor tinha seqüestrado sua poupança. Ela tinha um dinheiro separado p’ra comprar um apartamento no mesmo andar onde já tinha duas unidades (um para morar e outro para trabalhar) quando o malvado almofadinha abocanhou sua poupança e ela ficou na mão. A vontade de dizer ‘bem feito’ foi grande, mas, naturalmente, fiquei calado. Enfim, acho que já deu para perceber como era o ‘ambiente sócio-político’ naqueles tempos. Acho que já esgotei o assunto, pois, realmente, não há muito mais que elucubrar.
Transcrição de parte de carta de Antonio Carlos Faria de 7 Setembro 1987.
Oi Lú,
Só no dia Independência é que lhe escrevo. Eu já estava com vergonha da demora, que eu estava para lhe dar um alô. Quando recebi sua fita fiquei eufórico. Ouvia todos os dias e cada dia eu ia adiando a sua carta e veja só já faz quase um ano.
Eu fiquei feliz com sua carta trazendo notícias de la Pavone. No mesmo dia, eu estava falando com a Sissí. Ela estava eufórica me falando do Fan Club Rita Pavone e quando chego em casa lá está a sua carta com jornais de Rita. Eu voltei 20 anos, já que a moda agora é ‘voltar ao passado’ pois o presente anda russo (sic). A coisa aqui anda de mau (sic) a pior. Você não faz idéia. Eu não duvido nada se os milicos não tomarem conta daqui novamente pois até a cabeça do povo não tem sentido. Eles não tem jeito. Você vê nos carros adesivos com os dizeres ‘Delfim, eu era feliz e não sabia’ e ao lado uma caricatura do Delfim com as mãos nos suspensórios. Por ai você vê. Sem contar os escândalos que sempre fizeram parte da vida brasileira, mas é lógico, a Historia explica. Tudo já vem desde a Colonização, isto é, o Brasil que a gente sonhou mas não deu certo!
No mês passado saiu outro livro do Néstor (Perlongher) ‘O que é Aids?’. Ele estava entrando no mercado e agora parece que vai mudar para Paris, onde ele tem uma bolsa para fazer doutorado. Eu tenho tido algum contato com ele, pois se ele não for embora, será meu orientador na pesquisa que estou fazendo sobre o bairro do Glicério e você sabe (que) aquele bairro dá uma tese de Sociologia ou Antropologia. Pretendo fazer mestrado, estou estudando para tentar entrar na PUC. Lú, vou ficando por aqui. Espero não voltar a perder contato. Um abraço, Antonio Carlos.
No comments:
Post a Comment